Tudo o que o Ultramar levou

Esta reportagem foi desenvolvida e adaptada no âmbito de duas unidades curriculares do curso de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social: Ateliê de Jornalismo Radiofónico e Laboratório de Jornalismo III. Com estas duas versões, para rádio e para imprensa, quero mostar o amor não só de duas pessoas, mas o amor de uma família a quem a Guerra do Ultramar tirou (quase) tudo.



“Meu amor, eu tenho muitas saudades tuas, e de tudo o que me liga a ti. Sinto-me tão só, no entanto, e tão submergido, que tenho quase a certeza que não voltarei a ver. Tudo me faz falta neste deserto estúpido e, não sei porquê, levo o tempo a pensar na nossa casa (…), nos móveis, nos cheiros e nas coisas. Já não sei o que é vestir outra roupa que não sejam fardas e fardas. (…) Começo a compreender: não voltarei a ser a pessoa que fui, nunca mais.” (ANTUNES, Lobos António; Cartas de Guerra) 

João Reis foi destacado da Força Aérea
Portuguesa em Angola.
João Reis tinha 18 anos em 1969 quando se voluntariou, à força, para a Força Aérea Portuguesa. Para além da família que deixou em casa, em Torres Novas, o que tinha mais saudades era do céu azul. Em Angola isto não havia. A “cacimba”1 era do que mais falava. Não se via sol, nem azul no céu, só o negro escuro que retratava a alma dos soldados que em Angola perderam muito do que tinham.

Tudo o que o Ultramar levou. O amor, a família, a  felicidade, a segurança. As memórias. 

Para quem vai, as saudades são o que mais custa. Saudades da família, dos amigos, da terra. Saudades de Portugal, do sol, e da comida. Saudades. Sobretudo, saudades.

Em maio de 1971, João partiu para Angola de onde só voltaria dois anos depois, em julho de 1973. Era operador de comunicações, mas realidade, fazia tudo o que fosse preciso, desde controlador a aéreo a meteorologista. Foi também transmissor no Centro Cripto, função essa que lhe trouxe perigos. Chegou a ser, inclusive, ameaçado por transmitir certas mensagens e chegou a ser perseguido pela PIDE2. Conta que, quando regressou a Portugal, todos os dias ia ao mesmo café e que todos os dias a mesma pessoa se sentava ao seu lado, seja em que mesa for, para escutar as conversas que tinha com os companheiros. No dia 25 de abril de 19743, essa mesma pessoa foi encontrada no rio. 

Modelo de um aerograma, o único que
João e Maria guardaram.
A única ligação que os soldados tinham com a família que ficava pela metrópole era por carta. O telefone era uma regalia. João conta que apenas falou ao telefone com a família uma única vez em dois anos.

As cartas eram escritas em aerogramas que custavam 3 tostões ($30). Já o transporte era oferta dos Transportes Aéreos Portugueses (TAP). Mas até essa correspondência era  controlada pela censura. Os aerogramas eram  facilmente abertos e identificados, por isso, tanto os soldados como as famílias sabiam que tinham limitações naquilo que escreviam. O medo dominava e João sabia que “não tinha hipótese para dizer aquilo que queria, nem o que pensava”.

João em Angola a ler um aerograma
escrito pela mulher.
As memórias acabavam guardadas em baús, gavetas ou malas, carregando uma saudade e uma história inigualável. Fechadas a sete chaves como desejavam que acontecesse com o Ultramar e com todas as memórias que esta guerra lhes trouxe. 

Ouve-se muito a expressão “os melhores anos da minha vida”, mas raramente se fala nos piores. Naqueles que deixam uma ferida marcada que não sara, nem cicatriza. Maria queimou todos os aerogramas que recebeu. Não sobrou um único. Afirma que foi para tentar esquecer. Para se desapegar das memórias destes anos. Anos de censura e repressão. Anos de dor e sofrimento. Anos de separação e de guerra.

“Horrível, horrível, horrível". É assim que Maria Reis conta como foi o momento em que se despediu do marido. Num mar de angústia e solidão rumo a Angola. Rumo a uma guerra que não se sabia quando teria fim. Rumo à incerteza. Maria nunca foi a um embarque, nunca quis ver o marido a partir.  

A primeira filha de João e Maria nasceu em abril de 1971, um mês antes de João partir para Angola. Esta foi a principal razão de o afastamento ter sido tão duro. Não acompanhar o crescimento de um filho dói e rasga a alma. E foi o Ultramar qu
Uma das fotografias da filha que Maria enviou a João.
e tirou esta oportunidade a João. Não viu os primeiros passos de Paula, não lhe viu os primeiros dentes a crescer. Não acordou a meio da noite para lhe mudar as fraldas, nem lhe deu os primeiros biberões. Mais do que memórias, o Ultramar levou-lhe a vida. Apesar de ter ficado “marcado para o resto da vida”, Maria tudo fez  para que João acompanhasse o crescimento da filha. Dentro dos aerogramas, enviava fotografias da bebé Paula com descrições do momento na parte de trás. Talvez para que ele se sentisse presente. Talvez para que as saudades custassem menos.

Todos os dias João escrevia à família, mas a correspondência atrasava muitas vezes. Nos dias sem notícias, Maria sentia um aperto no coração — o medo pelo desconhecido e pela distância. Os maiores medos eram que o marido não voltasse ou que, se o fizesse, voltasse inválido com ferimentos físicos de guerra. Porque as mazelas psicológicas eram sempre inevitáveis. 

Quando chegavam os 10 ou 15 aerogramas ao mesmo tempo, um suspiro de alívio apoderava-se do corpo de Maria. A certeza de que tudo estava bem.

Em dois anos, João apenas veio um mês a Portugal de férias. Mas essas férias tinham uma condição: se os soldados não tivessem transporte para voltar para onde estavam destacados, tinham de arranjar e pagá-lo, o que era impossível para a maioria dos portugueses.

João com companheiros do Exército no Ultramar.
“Saudades dele, saudades de tudo”, é o que Maria nos conta com um sorriso nervoso, mas com lágrimas no olhos. As palavras custam a sair. Recordar os anos que passou longe do marido não é fácil. Nunca foi. São momentos “que mais vale não recordar”. 

De África, João leva companheirismo e amizade. Leva não só bons colegas, como também bons amigos. Pessoas com quem partilhou dois anos duros de Ultramar. Leva o companheirismo e a união. Leva também a boa relação com o povo africano e a amizade que criou com  alguns. Relembra os tempos em que ia “jogar à bola” com os naturais e de quando se encontravam na praia.  

Nas imediações da base onde João estava, havia uma criança que não tinha nem pai, nem mãe. Vendo a criança sozinha e desamparada, os soldados decidiram adotá-la para a tropa. A criança vivia com os soldados portugueses como se fosse ele próprio parte das Forças Armadas. Todos os soldados lhe ganharam um afeto enorme, como se fosse uma representação das suas próprias crianças que em Portugal deixaram. Mais do que um natural contra cujo povo  eles estavam a lutar, o menino tornou-se família.
João numa praia em Angola, com naturais angolanos.

João não foi a mesma pessoa desde maio de 1971. O Ultramar mudou-o e marcou-o. “A gente a vê-los ali a morrer ao pé da gente, era um bocado complicado”. As experiências traumáticas, os amigos desaparecidos. A revolta não era contra os povos africanos, mas sim contra o regime. Contra o regime que os obrigou a fazerem as malas e irem  para “o meio do mato com uma espingarda às costas”. Contra o regime que lhes tirou anos perto das famílias. Contra o regime que lhes tirou a juventude. Quando voltou, João não dormia e estava constantemente assustado. Ouvia sons que não eram reais e saltos na cama sem razão aparente.

Do Ultramar trazem-se memórias. Umas melhores, outras piores. Trazem-se lembranças que nos marcam e condicionam o resto da nossa vida. A palavra que marca estes anos, não só para Maria e João, mas também para milhares de portugueses é sofrimento. Muito mais do que uma revolução, o 25 de abril de 1974 foi, para os milhares de soldados e famílias, um alívio. Foi “a coisa mais extraordinária que aconteceu porque acabou com tudo”. Foi um grito de esperança e de vida. Foi deixar para trás as memórias e as mágoas. Foi um novo sentido para vida que tinha sido deixada a meio.

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